Uma coisa todo mundo sabe: Zorro sempre foi um sujeito de duas caras. O que ninguém – ou pouca gente – sabe é que ele escondeu por todos esses anos uma terceira faceta. Por trás das proezas do herói da ficção está a biografia de um herói de carne e osso. Sim, o Zorro existiu. Não era mexicano, mas irlandês. Não tinha os traços latinos do Antonio Banderas, que estrela A Lenda de Zorro, mas pele muito clara, barba e cabelos ruivos. Seu nome de batismo era William Lamport. E seu pseudônimo, Guillén Lombardo. O Zorro da vida real nasceu em 1615, na cidade portuária de Wexford, sudeste da Irlanda. Morreu em 1659, na Cidade do México, então capital da Nova Espanha, condenado pela Inquisição. Em apenas 44 anos, no entanto, protagonizou um roteiro de aventuras que não poderia ter tido outro destino senão Hollywood. E, claro, o imaginário de crianças e adolescentes desde 1920, quando o galã Douglas Fairbanks surgiu nas telas em A Marca do Zorro, um dos maiores clássicos do cinema mudo.
Nosso personagem veio ao mundo em um berço de heróis. Desde o século 16, a agrária Irlanda vivia em pé de guerra contra a poderosa Inglaterra, que queria converter os católicos daquela ilha ao protestantismo. O cerco à cidade irlandesa de Kinsale, ocorrido durante o reinado de Elizabeth I, foi um marco da batalha religiosa. Era o ano de 1601 e os rebeldes locais receberam ajuda da católica Espanha para a resistência: o rei Felipe III mandou para a ilha um contingente de 6 mil homens, armas e munição. O monarca esperava que a luta contra os ingleses na Irlanda desviasse a atenção e as forças da Grã Bretanha para fora da Holanda, que se encontrava sob domínio espanhol. O desembarque das tropas cristãs aconteceu no mês de outubro. Parte da frota que transportava munição não chegou ao destino, prejudicando os combatentes. Os reforços não adiantaram e, sitiada pelos ingleses, a cidade acabou se rendendo em 1603. Só que o ódio irlandês aos inimigos permaneceu e atravessou gerações. Como muitas outras famílias, os Lamport, donos de muitas terras e católicos fervorosos, estiveram lá, em Kinsale, para lutar ao lado dos espanhóis.
O mais novo integrante do clã dos Lamport, William, já nasceu sob o jugo inglês, 12 anos após a rendição dos irlandeses cristãos. Depois de alfabetizado, o menino deixou a pacata Wexford rumo à capital Dublin para estudar. Passou pelas mais prestigiadas escolas da cidade e aprendeu latim e retórica com os jesuítas. Aos 12 anos de idade, em 1627, desembarcou em Londres, com a missão de completar sua educação, estudando grego e matemática. Um ano depois, no entanto, o caçula dos Lamport foi condenado à prisão por traição à Coroa britânica. O jovem William tinha escrito um panfleto – em latim, diga-se – rebelando-se contra os mandos e desmandos do governo inglês sobre a Irlanda. Depois de uma misteriosa fuga, foi capturado por piratas e passou a viver e a trabalhar com os ladrões dos mares, atacando, principalmente, navios ingleses. Sua vida na pirataria duraria dois anos. Em 1629, William, então com 14 anos, envolveu-se em sua primeira guerra. Durante o Renascimento, a cidade de La Rochele, no oeste da atual França, havia começado a encampar os ideais religiosos reformistas até se tornar um importante centro para a igreja protestante francesa e seus membros, os chamados huguenotes. Foi contra eles que o jovem William lutou, combatendo ao lado dos franceses para acabar com o domínio dos protestantes sobre aquela cidade, que era um dos principais portos da Europa. Quando o rei católico Luís XIII resolveu acabar com a farra herege, La Rochelle foi isolada por trincheiras de 12 quilômetros de extensão. William abraçou a causa. E a cidade resistiu por apenas 14 meses.
Com La Rochele de joelhos, o rebelde irlandês dedicou-se a outra causa. Alistou-se nas brigadas da Irlanda e mudou de lado: desta vez, lutou contra a França, pela Espanha. Terminado o conflito, ele decidiu estudar filosofia em Santiago de Compostela, na Galícia. Depois, migrou para o tradicional monastério El Escorial, a 45 quilômetros de Madri, onde mergulhou na teologia. E, com 25 anos, em 1640, depois de percorrer todo o continente europeu, aprender 14 idiomas e encarar várias guerras, William voltou para a Espanha e resolveu que fincaria suas raízes ali mesmo. Mudou seu nome para Guillén Lombardo e foi agraciado com uma bolsa para ingressar no Colégio Imperial de Madri. A essa altura, o errante irlandês já era conhecido por suas bravatas e caiu nas graças de Gaspar de Guzmán y Pimentel, o conde-duque de Olivares, um dos homens mais importantes de toda a Espanha, braço direito do rei Felipe IV. Nessa época, Lombardo também já ensaiava os primeiros passos para tornar-se El Zorro: dominava a espada com a mesma habilidade com que arrebanhava corações. Sua vítima mais conhecida nessa época foi Ana de Leiva, uma nobre da corte espanhola.
Hasta la vista, baby
O caso do irlandês errante com a rica espanhola terminou no exílio de Lombardo na Nova Espanha, atual México. Como a família dela não aceitou o romance e exigiu a punição severa do forasteiro, Guzmán y Pimentel arrumou um jeito de livrar a cara – e o pescoço – do amigo: propôs a Lombardo um emprego do outro lado do Atlântico. Ele atuaria como espião, a serviço do conde-duque, entre as tribos indígenas que ainda dominavam o novo mundo. Assim que desembarcou na América, o irlandês assumiu seu posto – e sua dupla personalidade. Era, ao mesmo tempo, um pacato professor de latim que namorava a nobre Antonia Turcio e um freqüentador dos proibidos rituais de feitiçaria dos índios. O europeu virou, assim, um aprendiz de bruxo. E, em meio à vida agitada, ainda arrumava tempo para visitar as camas das mais bonitas e cobiçadas damas da Nova Espanha. Só que Lombardo acabou envolvendo-se mais do que devia com os índios. Começou a defender ideais mal vistos pela coroa espanhola, como a reforma agrária e o fim da escravidão. E, em pouco tempo, tornou-se líder de um embrionário movimento pela independência do México.
Dois anos depois de se instalar na América e abraçar a causa indígena, o irlandês, que havia lutado em defesa da Igreja Católica na Europa, acabou condenado pela Inquisição. Em 1642, aos 27 anos, ele foi preso sob as acusações de trair a Coroa espanhola, de planejar um levante popular, de envolver-se com bruxaria e, claro, de heresia. Lombardo amargou oito anos na cadeia. Na noite de Natal de 1650, no entanto, elaborou uma fuga tão fantástica que espalhou-se o boato de que ele tinha pacto com o diabo. Com 35 anos, o aventureiro virou, então, El Zorro, que, em espanhol, quer dizer raposa – ou, no sentido figurado, homem astuto. O apelido popular serviu como uma luva para o novo Lombardo. Exatamente como o personagem que inspirou mais de dois séculos depois, ele tornou-se um cavaleiro, que, como um fantasma da noite, vagava pelas cidades, fazendo justiça com as próprias mãos. Zorro zombava dos soldados e distribuía folhetos pregando contra a Inquisição. Nos textos que escrevia, denunciava as atrocidades daquele que se intitulava o Tribunal do Santo Ofício.
Mais uma vez, porém, Lombardo caiu do cavalo derrubado pelo seu ponto fraco: as mulheres. Em 1652, ele foi surpreendido na cama da mulher do vice-rei, don López Díaz de Armendáriz. A Inquisição novamente o prendeu. E, desta vez, o já legendário Zorro queimaria no “fogo que purifica”. A execução seria cumprida no dia 10 de novembro de 1659, sete anos depois da prisão. O dia marcado para o espetáculo público amanheceu chuvoso. Na Plaza Mayor, Cidade do México, a multidão acotovelava-se. Os carrascos conduziram Lombardo amarrado, montado no lombo de uma mula. O cortejo seguiu pela rua até chegar ao destino: o convento de San Diego, onde os inquisidores mantinham o quemadero. A fogueira já estava acesa, mas El Zorro não podia ter um fim tão banal. Como se estivesse em um filme, ele agarrou as cordas que o penduravam sobre a fogueira e se enforcou. Uma vez mais, El Zorro zombou de seus inimigos. E virou mito naquelas bandas. Sua luta não foi em vão. Lombardo entrou para a história do México como o precursor da batalha pela proclamação da independência. A Columna de la Independencia, na Cidade do México, tem um mausoléu para os heróis nacionais. No vestíbulo que dá acesso ao memorial, repousa um busto dedicado à memória do herói irlandês.
As pegadas do herói
Livro escrito dois séculos depois damorte de William Lamport foi a base para a criação do personagem mascarado
Em 1872, dois séculos após a morte de William Lamport, na Cidade do México, o general do Exército Vicente Riva Palacio (1832-1896) escreveu o livro Memórias de um Impostor: Guillén de Lampart, Rey de Mexico, em que conta as aventuras do forasteiro europeu nas terras mexicanas. No romance, baseado em vasto material biográfico encontrado nos arquivos da Inquisição, Lamport ganhou uma alcunha bem ao gosto local: Diego de La Vega. O romance não ficou famoso – e nem atravessou os séculos. Mas, segundo o professor Fábio Troncarelli, da Universidade de Viterbo, na Itália, autor dos livros La Spada e La Croce (“A Espada e a Cruz”) e The Man Behind the Mask of Zorro: William Lamport of Wexford (“O Homem atrás da Máscara do Zorro: William Lamport de Wexford”), inéditos no Brasil, a obra do general serviu para a construção do herói mascarado. O Zorro surgiu em cena pela primeira vez em 1919 na série The Curse of Capistrano (“A Maldição de Capistrano”), escrita pelo jornalista e romancista americano Johnston McCulley e publicada no semanário americano All-Story Weekly. Em 1920, o herói ganhou as telas de cinema, no filme A Marca do Zorro, estrelado por Douglas Fairbanks. Em 1940, o ator Tyrone Power protagonizou a segunda versão de A Marca do Zorro. E, em 1958, a Disney lançou a série de TV mais famosa do personagem, com Guy Williams no papel principal. Em 1998, foi lançado A Máscara do Zorro, com Antonio Banderas e Anthony Hopkins. E, em outubro, A Lenda de Zorro, com Banderas e Catherine Zeta-Jones. Na ficção, o jovem hispânico rebela-se contra a tirania do governo dos Estados Unidos, que acabara de anexar o território californiano, e passa a lutar pela liberdade da Califórnia, usando uma máscara para esconder a sua verdadeira identidade.
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