Por outras palavras: o pacto com o Diabo é o contra-modelo negro do Baptismo. O compromisso do Baptismo implica o repúdio de Satanás e das suas obras, tal como vem explícito no ritual sancionado pelo Concílio de Trento: o recipiendário (ou o padrinho em nome da criança) participa no seguinte diálogo («Exorcismo Solene»), em resposta às perguntas do sacerdote:
— … Abrenuntias Satanae? [Renuncias a Satanás?]
— Abrenuntio. [Renuncio]
— Et omnibus operibus eius? [E a todas as suas obras?]
— Abrenuntio. [Renuncio]
— Et omnibus pompis eius? [E a todas as suas pompas?]
— Abrenuntio. [Renuncio]
Por outro lado o pacto com o Diabo, sendo um anti-Baptismo, implica o correlativo repúdio de Cristo, da Cruz e da Igreja, com expressões formulaicas semelhantes mas de sentido inverso.
Dizem os estudiosos destas profundas matérias que o primeiro exemplo de um pacto com o Diabo na era cristã, registado literariamentre, ocorreu no século IV, com intervenção salvífica de S. Basílio Magno (330-379 d.C.), bispo de Cesareia. O senador Proterius de Cesareia tinha um filha única, muito bela e graciosa, que desejava conservar a virgindade e entregar-se à vida consagrada a Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta história vem associada à «legenda» de S. Basílio, tal como é narrada na famosa Legenda sanctorum, mais conhecida por Legenda aurea, da autoria de Jacobus de Voragine (1230-1298), arcebispo de Génova, que a partir de 1264 se dedicou a escrever uma enxundiosa compilação das vidas e dos milagres dos santos, obra que gozou de grande prestígio e popularidade durante séculos e que depois foi acrescentada por outros autores. Nela se conta que «o inimigo da espécie humana, tendo conhecido a resolução da jovem, fez com que um dos servos do senador [Voragine chama-lhe Heradius] se abrasasse de amores por ela» (Voragine 1900, vol. 2, pp. 115 segs.). O servo, compreendendo que a sua condição de escravo não lhe permitia alimentar ilusões acerca da donzela, foi ter com um feiticeiro que acedeu ajudá-lo e que escreveu um carta dirigida ao Diabo, seu mestre; em seguida o feiticeiro aconselhou o servo a ir de noite ao cemitério e que lançasse a carta ao ar e invocasse o demónio, e tudo isto sobre a sepultura dum pagão:
E o príncipe das trevas veio, rodeado por uma multidão de diabos; e quando apanhou a carta disse ao jovem servo: “Crês em mim, para que eu cumpra a tua vontade?” E o servo disse: “Creio, senhor”. E o Diabo disse: “Renegas Jesus Cristo?” E ele disse: “Renego”. E o Diabo disse-lhe: “Vós outros, cristãos, sois uns batoteiros, porque quando tendes precisão de mim, vindes ter comigo, mas logo que obtendes o que desejais, renegais-me e regressais ao vosso Jesus Cristo; e ele acolhe-vos, porque é muito bondoso; mas se queres que eu faça a tua vontade, redige um escrito por tua própria mão no qual confessarás ter renunciado ao teu Baptismo e à profissão cristã, e reconhecer-te-ás como meu servo, sendo condenado comigo no dia do Juízo» (Voragine 1900, vol 2, ibid.).
Por aqui se delineiam já as principais características deste modelo: (1) o formulário semelhante ao do Baptismo mas de sentido inverso; (2) a confissão do Diabo que reconhece a ilimitada bondade de Jesus Cristo; (3) a precaução jurídica do contrato assinado por mão própria e que em lendas posteriores será reforçado com o sangue a servir de tinta.
A história continua e as peripécias sucedem-se, o Diabo chamou os «espíritos de fornicação» que inflamaram o coração da donzela pelo jovem servo, a tal ponto que ela morreria se não casase com ele, os pais dela não tiveram outro remédio senão consentir no malfadado casamento. Claro, passados os primeiros entusiasmos a coisa começou a correr mal, o rapaz deixara de frequentar a igreja com grande escândalo dos habitantes de Cesareia, e por fim os remorsos entraram a corroê-lo. Quem lhe valeu foi o bem-aventurado bispo Basílio a quem ele recorreu em desespero, e que à força de orações e de esconjuros, acompanhado por todo o clero que pôde reunir, lá conseguiu que o pergaminho com o demoníaco contrato lhe fosse devolvido; S. Basílio rasgou-o, perdoou o jovem, impôs-lhe certas regras de conduta cristã e disse-lhe que continuasse casado e em paz.
Pelo menos o truque resultou: à custa do Diabo o servo casou com a filha do patrão e continuou casado e feliz — sempre conseguiu o que queria, ir para a cama com a menina —, tendo no final recuperado a alminha com a batota da conversão.
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