
Em 1493 Cristovão Colombo regressara da América convencido que vinha da Ásia Oriental, de Cataio ou de Cipango (ele próprio não sabia bem!). Na verdade estivera apenas em Guanahani, Cuba e Haiti. Aportou a Lisboa com um carregamento de selvagens de epiderme pardacenta, cabelos pretos e escorridos. Supunha que eram índios, da Índia. Apresentou-os triunfante a D. João II, pensando vingar-se da afronta que o monarca lhe fizera não o tendo contratado. D. João sabia perfeitamente que aqueles homens nus a tiritar de frio não vinham do Indostão, uma civilização que ele sabia milenar e com um nível de sofisticação muito superior. Convinha-lhe, porém, simular que acreditava em Colombo, para melhor convencer os castelhanos que eles se tinham adiantado na descoberta do caminho marítimo para a Índia, enquanto ele ultimava a sua estratégia na descoberta do rumo verdadeiro. Bartolomeu Dias dobrara já o Cabo da Boa Esperança e D. João estava na posse da carta de Pêro da Covilhã, enviado em missão de espionagem terrestre até terras de Prestes João (Etiópia).
Colombo seguiu o seu caminho para Castela. D. João, tendo podido silenciá-lo para sempre (como chegaram a propor alguns cortesãos), preferiu deixar os Reis Católicos cair no engodo. E eles caíram! De imediato exultaram com a “descoberta da Índia” e quiseram dela tomar posse. O Príncipe Perfeito vibrou, então, o golpe de mestre que iria rematar toda a sua brilhante carreira de governante. Mostrou-se indignado. Armou barcos. Fez preparativos para a guerra. Aquelas terras descobertas por Colombo pertenciam-lhe. A tenção cresceu, deliberadamente exagerada por parte de Portugal. Trocaram-se azedas notas diplomáticas. Por fim, o Papa acabou por intervir, para evitar a guerra entre as duas potências cristianíssimas. O ignorante Sumo Pontífice traçou a célebre linha que dividia o Globo em dois hemisférios, o Ocidental para os castelhanos que, assim, ficariam com as terras de Cipango; o Oriental para os portugueses que lhes dava a África e o caminho marítimo para a Índia (que só D. João e alguns confidentes sabiam estar já aberto com a viagem de Bartolomeu Dias). A linha passava a 100 léguas a ocidente e Cabo Verde. D. João, porém, exigiu que essa linha passasse a 370 léguas. Depois de se certificarem que a alteração não ameaçava as descobertas de Colombo, os monarcas castelhanos concordaram. A 7 de Julho de 1494 celebra-se o Tratado de Tordesilhas, deixando os espanhóis arredados, por muito tempo, da melhor parte da América do Sul e de todo o Extremo Oriente, só porque estavam mais atrasados em Geografia.
É quase certo que Portugal sabia já da existência das terras brasílicas, avistadas por navegações mais arrojadas partindo dos Açores. A atitude negocial e visão de D. João II conseguiram, assim, duas coisas essenciais para a criação do Império Marítimo Português: o exclusivo da navegação do Atlântico Sul, permitindo contornar a África através da “volta do largo”, garantindo a Carreira da Índia; e a presença “de jure” no Novo Mundo, criando uma colónia que hoje é o Brasil. Havia, porém, que consolidar o estabelecido.
Entre as várias cláusulas do Tratado de Tordesilhas importa destacar uma. Previa-se a constituição de uma comissão mista e paritária de astrónomos e pilotos que participaria numa expedição conjunta destinada a determinar, no prazo de dez meses, os marcos fixados virtualmente no Tratado. Portugal, contrariamente a Castela, nunca tomou qualquer iniciativa para dar cumprimento à cláusula. Estava-se em 1494 e a prioridade era, então, o Caminho Marítimo para a Índia. No caso de uma expedição conjunta encontrar terras a poente, isso poderia provocar confusões sobre a determinação do hemisfério em que as mesmas se situavam. A monarquia portuguesa preferia que os Reis Católicos continuassem a acreditar que tinham chegado a oriente, baseados nos relatórios de Colombo, enquanto se faziam os preparativos para a viagem de Vasco da Gama. Depois, Castela seria confrontada com a triste realidade da sua ridícula convicção. Até lá, tudo o que se descobrisse para ocidente seria mantido secreto.
D. João II morre em 1495. Sucede-lhe o cunhado D. Manuel, duque de Beja. Em Outubro de 1497, D. Manuel casa com a princesa Isabel, filha mais velha dos Reis Católicos e, simultaneamente, morre o filho primogénito daqueles monarcas, deixando grávida a mulher, Margarida de Áustria, que dá à luz um nado-morto. A sucessão de Castela e Aragão recai, então, sobre os reis de Portugal. Instado pelos reis católicos, D. Manuel, contra o parecer de muitos nobres portugueses, acaba por aceitar. Juntamente com a mulher, Isabel, parte para Castela e chega a ser jurado herdeiro em Toledo, a 28 de Abril de 1496. Logo a seguir, D. Isabel morre ao dar à luz o príncipe D. Miguel da Paz, doravante sucessor das três coroas e D. Manuel, com a morte da mulher, perde automaticamente a qualidade de herdeiro presuntivo dos reinos de Castela e Aragão e regressa a Portugal. O filho fica, no entanto, em Castela sob tutela dos avós, o que não deixava de ser preocupante. É à luz desta teia de acontecimentos que deve ser interpretada a posterior expansão ultramarina das monarquias peninsulares.
Havendo já notícia de expedições castelhanas e inglesas sobre o Atlântico Sul, era necessário averiguar com urgência as demarcações de Tordesilhas e verificar se essas expedições estavam na área de influência de Portugal. É assim que D. Manuel elabora “um plano sistemático nas águas do Atlântico ocidental, ao norte e sul do equador”.
Uma dessas explorações, comandada por Duarte Pacheco Pereira, descobre o Brasil entre Novembro e Dezembro de 1498. A prová-lo está o manuscrito Esmerado de situ Orbi, da autoria de Pacheco Pereira e que esteve desaparecido por quase 4 séculos. Nele se contêm descrições exactas dos locais a que a expedição chegou, sua fauna, flora e habitantes humanos. Acrescem inúmeras provas recolhidas em documentos castelhanos, nomeadamente no Memorial de la Mejorada, bem como no Planisfério de Cantino e ainda na própria Carta de Pêro Vaz de Caminha.
As medições de Duarte Pacheco Pereira indicam como linha de demarcação o meridiano 36º a oeste de Lisboa, o que deixaria na esfera castelhana uma parte do litoral maranhense e a totalidade do paraense. Esta a explicação porque a descoberta não foi divulgada.
Pedro Álvares Cabral, comandante da 2ª armada para a Índia, “limitou-se” a estabelecer nas terras já descobertas um ponto de apoio na Carreira para a Índia que passaria a cruzar o oceano austral regularmente e precisava de uma escala na “volta do largo” (um percurso superior a 3000 milhas). E mesmo essa viagem obedeceu a condições de extremo secretismo e só viria a ser publicitada em Junho de 1501, quase um ano depois de a notícia ter chegado secretamente a D. Manuel. Nessa altura, já a rota para a Índia estava assegurada e o “pequenito” D. Miguel da Paz morrera aos 2 anos de idade, libertando a sucessão do trono português de uma partilha, no mínimo, incómoda.
Bibliografia consultada: “A Construção do Brasil”, de Jorge Couto; “D. João II - O Homem e o Monarca”, de Mário Domingues; “O Descobrimento do Brasil”, Damião de Peres e “Na Rota da Pimenta”, de Teresa de Castelo Branco.
Um comentário:
Muito bom o texto.Parabéns
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